Bem-estar Físico

Por que prancha, ponte lateral e perdigueiro se tornaram tão populares?

Com certeza você já prescreveu, ou realizou, esses exercícios: prancha, ponte lateral e perdigueiro. Mas por que eles se tornaram tão populares? Apesar de estarmos no auge da produção científica sobre o assunto treinamento de core, e você pode confirmar isso realizando uma pesquisa no PubMed (um banco de dados muito utilizado na área da saúde), a história desses 3 exercícios começa há muito tempo atrás, mais precisamente na década de 50.

Era uma vez um médico sueco chamado Alf Nachemson¹. Ele recebeu o cargo de assistente de pesquisa para estudar as condições de carga da coluna vertebral humana. Sendo assim, desenvolveu um método para medições de pressão intradiscal e publicou um estudo que ficou muito famoso onde mostrava as posições corporais que mais geram pressão intradiscal (dentro do disco vertebral).

Quase 50 anos após os estudos de Alf Nachemson, os experimentos foram repetidos por outro grupo, do ‪Hans-Joachim Wilke², cujas descobertas confirmaram amplamente a as descobertas iniciais.

Suas medições pioneiras ainda são marcos em livros em todo o mundo e seus desenhos clássicos de diferentes posições do corpo sobre gráficos de barras de pressão foram representados em inúmeras publicações.

A popularização dessa imagem pode ter contribuído para o início de correlações entre: Posição corporal → Aumento da pressão discal = Evitar esses movimentos.

Algum tempo depois, na década de 80, o dinamarquês Lars Nielsen se interessou em entender a relação entre comportamento motor e dor. Foi o início do nosso entendimento de que algumas coisas, como por exemplo, o recrutamento motor (velocidade, frequência, potência) e a marcha, mudavam quando se experienciava nocicepção (estímulos que vão do corpo para o sistema central). E o que vimos com os estudos de Nielsen e de colaboradores é que sim, existia diferença entre comportamento motor “normal”/sem dor x comportamento motor com dor. A junção dos conhecimentos da época levou ao entendimento, precipitado, que algumas posições e a alteração do comportamento motor causavam a dor.

Contemporâneo ao Lars Nielsen, um autor indiano, Manohar M Panjabi³, com grande contribuição para o estudo da coluna, publicou em 1992 uma dupla de artigos que foi citado mais de 3 mil vezes.

No artigo “O sistema estabilizador da coluna vertebral” (tradução livre), ele popularizou o termo estabilidade, trazendo a hipótese que a instabilidade lombar era um dos motivos que poderiam causar a dor lombar, pois o que tínhamos até o momento de tratamentos disponíveis não eram efetivos. Com essa hipótese, um movimento grande e anormal na região poderia causar dor e micro lesões.

Ele trouxe o conceito de sistema de estabilidade consistindo em três subsistemas:

  • Passivo: Sistema esquelético e ligamentos;
  • Ativo: Músculos;
  • Controle Neural: receptores mecânicos e centros neurais de controle e atuam de maneira interdependente.

Esse sistema de estabilidade, usado até hoje, mas bastante incompleto pelos conhecimentos atuais, nos mostrou a importância do sistema nervoso no movimento. A capacidade de estabilizar ganha superpoderes e passa a ser a solução dos problemas de dores e lesões na coluna.

Reparem como todos os achados nos levam a preocupação de quanto e como nos movimentamos e de como nossa coluna é frágil. Talvez assim, deixando no ar e na cabeça dos pesquisadores e treinadores da época, que a nossa falta de capacidade de inibir movimento era a problemática a ser enfrentada. E para “ensinar” a inibir os movimentos indesejados, os exercícios em contração isométrica, ou seja, sem movimento, e exercícios já com a coluna pré posicionada em uma “posição correta” e neutra, faria todo sentido.

Assim, com todo esse background de entendimento, em 1996, Paul Hodges4 publicou um artigo mostrando que pessoas com dor lombar tinham um atraso de ativação do transverso e oblíquo interno. Em um movimento voluntário, sabemos que o timing de recrutamento muscular esperado é: músculos profundos antecipatórios, sinergistas posturais e depois os motores primários do movimento. Ele comparou nesta pesquisa, do tipo caso controle, as diferenças entre pessoas sem dor e com dor realizando movimentos com braço. Como resultado teve: pessoas com dor lombar tiveram atraso do recrutamento dos músculos profundos. Os achados fizeram todo sentido na época, e com isso, tratamentos foram sugeridos colocando o atraso da ativação como causa da dor lombar. Afinal, os vilões a serem enfrentados eram: movimentos que aumentam a pressão discal, micromovimentos e instabilidade. Porém, estudos do tipo caso controle são estudos transversais, sem potencial de causalidade, havendo, na época, uma extrapolação. Pessoas com dor realmente têm uma diferença de ativação muscular comparado às pessoas sem dor, mas não significa que isso causa dor, mas sim, pode ser uma consequência da dor.

Esse estudo contribuiu e muito para o nosso foco em “estabilizar” e ativar musculaturas isoladas. Provavelmente vocês já ouviram alguém pedindo para contrair o abdômen! Ou que temos que ativar o transverso.

Hoje, parece que esse histórico foi uma tamanha extrapolação. Não há plausibilidade biológica para contrairmos voluntariamente músculos profundos.

No início dos anos 2000, o canadense Stuart McGill5 popularizou os exercícios de estabilização, com a crença que micro movimentos pudessem ser a causa das dores na coluna. Para ele, tínhamos que ensinar a coluna a evitar movimentos nos 3 planos, ou seja: para frente e trás, de um lado para o outro e rodando. O big 3, como ele chamou o conjunto dos 3 principais exercícios: curl up, ponte lateral e perdigueiro, se popularizou rapidamente no mundo por ser de fácil entendimento e aplicação.

Ufa, a história foi longa, mas chegamos nos 3 exercícios citados no primeiro parágrafo.

Toda uma base de conhecimento foi produzida em cima dessas hipóteses.

Não é exagero dizer que temos uma geração de profissionais de movimento e praticantes de atividade física, (no qual eu me incluo), educados em cima dessas hipóteses, com um olhar extremamente estruturalista.

Ficamos 50 anos com uma perspectiva que o movimento da coluna era maléfico e superestimamos o potencial da ativação muscular e capacidade de evitar movimento, principalmente utilizando da rigidez e exercícios feitos em contração isométrica, como o “Big 3”.

Mas a produção de artigos sobre o tema foi aumentando e o que sabemos hoje é que essas hipóteses não são efetivas como os autores pensaram. Com relação a dor, isso não se comprovou ao longo do tempo, o próprio Paul Hodges voltou atrás e hoje ele entende que é muito mais complexo que isso.

Exercícios criados com o intuito de melhorar puramente algum músculo sozinho também não fazem sentido, e sim, devemos pensar na “orquestra muscular” como um todo. Esse tipo de treinamento de core teve apenas pequenos efeitos nas medidas de aptidão física. E em alguns casos, nenhum efeito no desempenho atlético. Uma possível explicação fornecida pelos autores6 é de que o papel da especificidade do treinamento muitas vezes não é capturado nos exercícios básicos clássicos, nas quais realizamos apenas 1 tipo de contração, a isométrica, não aproximando adequadamente das ações musculares das tarefas e nem da posição do corpo observadas nas atividades.

Os exercícios precisam ser específicos para possibilitar a aprendizagem motora.

Então esses exercícios são bons para melhorar eles próprios. Podemos até ter uma pequena transferência quando falamos desses exercícios de core para movimentos de supino, back squat e puxada livre, mas não são melhores que os próprios supinos, back squat e puxada livre. Por exemplo, quando pensamos em movimentos mais funcionais, não encontramos melhoras em treinar esses exercícios x melhoras nos testes. Assim, como também, não vemos uma correlação positiva entre esse tipo de treinamento e situações do dia a dia.

Precisamos dar um passo à frente no conhecimento de exercícios para o treinamento de core e propor uma prescrição mais focada nas necessidades reais do dia-a-dia.

Obrigada por ter chegado até esse ponto do texto. Aqui no Talk da Saúde gostamos de nos aprofundarmos nos assuntos. Por isso, para nós, é muito importante saber sua opinião.

Referências:

1-Alf Nachemson (1965) In vivo Discometry in Lumbar Discs with Irregular Nucleograms Some Differences in Stress Distribution between Normaland Moderately Degenerated Discs, Acta Orthopaedica Scandinavica, 36:4, 418-434, DOI: 10.3109/17453676508988651.

2-Wilke HJ, Neef P, Caimi M, Hoogland T, Claes LE. New in vivo measurements of pressures in the intervertebral disc in daily life. Spine (Phila Pa 1976). 1999 Apr 15;24(8):755-62. doi: 10.1097/00007632-199904150-00005. PMID: 10222525.

3-Panjabi MM. The stabilizing system of the spine. Part I. Function, dysfunction, adaptation, and enhancement. J Spinal Disord. 1992 Dec;5(4):383-9; discussion 397. doi: 10.1097/00002517-199212000-00001. PMID: 1490034.

4-Hodges PW, Richardson CA. Inefficient muscular stabilization of the lumbar spine associated with low back pain. A motor control evaluation of transversus abdominis. Spine (Phila Pa 1976). 1996 Nov 15;21(22):2640-50. doi: 10.1097/00007632-199611150-00014. PMID: 8961451. https://shrs.uq.edu.au/profile/157/paul-hodges. Richardson, C. A., Jull, G. A., Hodges, P. W. and Hides, J. A. (1999).Therapeutic Exercise for Spinal Segmental Stabilization in Low Back Pain: Scientific Basis and Clinical Approach. Edinburgh: Churchill Livingstone.

5-McGill, S. M. (1998). Low Back Exercises: Evidence for Improving Exercise Regimens. Physical Therapy, 78(7), 754–765. doi:10.1093/ptj/78.7.754. http://backfitprobrasil.com.br/sobre.php. https://www.oxygenmag.com/ab-workouts-for-women/the-mcgill-big-3-for-core-stability/

6-Prieske O, Muehlbauer T, Granacher U. The role of trunk muscle strength for physical fitness and athletic performance in trained individuals: a systematic review and meta-analysis. Sports Med. 2016;46(3):401–19. Martuscello, JM, Nuzzo, JL, Ashley, CD, Campbell, BI, Orriola, JJ, and Mayer, JM. Systematic review of core muscle activity during physical fitness exercises. J Strength Cond Res 27(6): 1684– 1698, 2013.